O Rômulo não olha mais pra mim. Saiu outra espinha no nariz. Reprovei no exame de ballet. Fiquei de recuperação de geometria. Aquele professor tarado de história não larga do meu pé com suas piadas ridículas. Minha mãe não me entende, me sufoca, não acredita em mim. Meu pai ainda acha que cinema, sorvete e pipoca aos fins de semana lhe absolve da culpa de nos ter deixado tão cedo com aquela quenga. Depois de tantos anos trocando confidências comigo, a Camila resolveu me ignorar e ser a kardashian da escola. Não tenho onde chorar nem ficar sozinha, pois nestes mesmos únicos lugares fora do mapa da vigilância do inspetor aqueles esquisitos habitam empoleirados como morcegos sobre a carniça. Vou estourar onde? Na sala de aula? No corredor da escola? Trancada no banheiro? No parque infantil ao caminho de casa cheio de merda de cachorro? E nem cheguei ainda nos dias de minha TPM – cada vez pior.
Certa época pensei que esses eram problemas reais. Daquele tempo em que ia à igreja obrigada, ficou a lembrança de Jó, que chamei de ridículo por diversas vezes em pensamentos sombrios, fantoche do jogo entre deus e o diabo. Ele não saberia o que é sofrer.
Cresci. Continuo sozinha e com o soundtrack do medo servindo de background sonoro ao filme da minha vida. Mas tenho um otimismo doentio. Realmente devo transformar a esperança no que ela realmente é e ninguém percebe… o último mal que restou incrustado em nossos corações.
Mesmo com todo este otimismo, com toda esta alegria em levar a vida, inundada toda manhã com este sentimento de gratidão ao universo – não, não me oriento para isso, simplesmente, me sinto assim – há momentos em que todo o peso do mundo parece cair sobre nós. Não é uma espécie de síndrome de pânico – ainda que facilmente eu ou você possa ficar em pânico – nem alguma esquizofrenia ou um estado de depressão insano, mas você sente que todo o mal está te buscando, perseguindo, trazendo mais um pouco da desgraça que lhe fará de exemplo.
Sombras que buscam seu cheiro, sua forma, sua luz, seu som, os grunhidos das suas entranhas, o seu nome pronunciando entre conhecidos, qualquer coisa serve para este negrume vivo lhe encontrar trazendo as boas novas do fracasso, do “deu errado”, doença, caos, problemas, discussões, desilusões, invejas, ciúmes, desconfiança… provocando um desequilíbrio insustentável à sua vida emocional, física e mental.
Como escapar disso? Teve épocas em que, munida de toda coragem que encontrei, resolvi encarar estes problemas (que são artificiais, que poderiam nunca se exteriorizarem, mas que se encontra facilmente suas razões quando lamentavelmente surgem), transformar isso numa guerra onde eu estava determinada sair vitoriosa. Minha amiga, nunca faça isso. Você será esmagada, destruída, pisoteada de uma maneira que até hoje não sei como me reergui e continuei andando pela vereda da vida.
Esta sombra é um fluxo do mal. Seria o diabo de Jó? Se eu o visse no espelho, eu teria medo dele ou ele de mim? O medo constitui sua natureza, o medo é dele… Esta poderia ser minha sombra, mas não este fluxo. Este fluxo, serpente negra que habita o entre-nós, é alimentado pela desconfiança de fracas almas que não se entregaram ao presente da rede da vida. É um executor da sentença proferida em coro por nossas sombras sociais.
Eu conseguia pressentir esta serpente me procurando. Sua presença era vista-sentida por mim passando ao lado de minhas amigas, família, conhecidos. Minha conexão com todas essas pessoas me permitia ao mesmo tempo pressentir a sombra em seu movimento serpentino e traiçoeiro. Por pura sorte, percebi que havia um estado em que eu conseguia observá-la, mas ela não me via. Ela sabia que eu estava lá, mas não era capaz de me encontrar. Busquei entender como fazia isso.
Quando você brinca de esconde-esconde, você acha um canto ou buraco qualquer e fica ali quietinha. Não se mexe, não respira, não fala. Nada que possa criar uma ponte de conexão com quem lhe procura. Conexão. É possível estar ali sem estar conectado? Ou estar conectado sem estar ali?
Talvez seja impossível nos desconectarmos um dos outros. Sempre alguma coisa sua andará com os outros, e dos outros contigo. Mas aprendi ser possível ficar invisível. Quero dizer, atingir um estado de neutralidade, que não alimenta as emoções existentes entre as conexões. Aprendi que estas emoções trazem você à lembrança dos outros. Que as emoções geram a alquimia dos encontros. Que as emoções são as pontes que acoplam nossas diferentes estruturas sociais, as pessoas que somos enquanto somos.
Esta neutralidade é a emoção existente na não-ação. Como viver seu dia-a-dia em estado de não-ação. Não é não-agir, congelar, não fazer nada. É agir sem influenciar. Opinar sem se comprometer. Aceitar sem assumir. Se responsabilizar sem se culpar. Doar sem se deixar. É observar sem ver. Ouvir sem embalar. Sentir sem se envolver.
Seja um observador invisível de si mesmo e do mundo que te circunda na mais absoluta neutralidade de julgamentos ou emoções. Não mantenha este observador fora ou acima de você, traga ele para seu centro-de-si-mesmo.
Aprendi que o buscar-sem-achar desta sombra é fatigante para ela, cansa, desgasta, e a energia que a mantém animada se esvai. Ela não pode com este estado de neutralidade. É emocionalmente ininteligível para ela, fora do seu mundo, impossível de ser e existir. Ela murcha, ou ainda, retorna fumegante causando confusão entre seus progenitores sociais.
Agora, dê sua mão pra mim e vamos juntas deixar ir.
Vamos juntas viver o estado de vir-a-ser.
Juntas no fluxo que nos descobre ao presente da vida.