Aqueles humanos que fomos não conheciam o tempo. Eram plenos de potência em tudo que faziam.
Nada deviam ao passado. Nada esperavam do futuro.
Alegres, tristes, raivosos, entusiasmados, amorosos, abraçados.
Novos sons formavam nomes para si sempre que o desejo ardia em seus corações livres.
Cuidado mútuo. Filhos de todos nós. Invenção e imaginação.
A morte não existia, um sono cujo sonho nos interpenetra e vivifica.
E fomos observando, descobrindo, criando novos olhares.
Eis que estranhos se aproximaram desconfiados e receosos.
Disseram que uma luz caiu do céu. Chamaram de chispa divina. E ela brilhou no primeiro dos muitos deuses que surgiram depois, e nos que foram revelados como de antes.
E a luz se fez: confusão, ordem, hierarquia, obediência, culpa, recompensa.
Aquele homem agora era chamado deus. Não era mais humano. Era mais que humano. Mais que uma pessoa comum. Mais que o pó de todos nós.
Estava edificada uma ordem. Chamou de sagrada.
Havia o que foi antes de tudo. Buscavam o que ainda não era. Os dias foram contados, e havia o tempo, o espaço, a utilidade.
Surgiu a morte (dos homens), e com ela a vida (dos deuses).
E na escada que separava a terra do ouro, o hiereus pairando sobre o altar cedia passagem aos esforçados ignorantes que buscavam a promessa da sabedoria.
Realizou-se a suma-perversidade da transformação da vida em árvore do conhecimento do bem e do mal.
Saltamos da convivência para o trabalho. Do ócio para a obrigação. Da paz para o dever: de servir, de obedecer, de prosperar, de conquistar, de vencer, de se imortalizar.
Viva o que batizamos como civilização! Viva a verdade, e com ela seu mundo único! Abençoados que somos pela lei que a tudo e a todos rege!
Felizmente a criança persiste desobediente, revelando o que resta de nossa nudez asfixiada. E o tolo ancião se defronta com todos os mundos que nunca puderam existir, morrendo por inanição de liberdade.