O peixe zomba do homem que acredita que o rio é sempre o mesmo. – Menino novo… – diz a tilápia enquanto chega à superfície para ver melhor aquele borrado monocromático do seu comparsa da espécie homo. Ora, todos sabem que os peixes só enxergam colorido dentro da água e um monocromático azulado fora.
Leandro está sorridente, sentado de pernas estendidas na beira daquele rio. Se deleita com sua incapacidade de entender Heráclito.
– Ninguém se banha no mesmo rio duas vezes. Ah, mas se sou ninguém, seria possível? – pensa em voz alta.
Ele não quer entender. Se joga nos devaneios como criança em toda sua potência. Ao ver a tilápia lhe mandando um beijinho, retribui e sorri. A tilápia, tímida, submerge, dá uma voltinha. Durante o círculo que realiza aos olhos do seu velho amigo é absorvida por um ligeiro e pequeno redemoinho e dá um salto de alegria. Ela, a tilápia, conectou-se com a pessoa fluída e fugaz daquele movimento centrípeto.
– Seria possível tilápias desta espécie de luz prateada serem infiéis a quem já foram, a quem são? – indagou Leandro a si mesmo.
Silenciosa e bruscamente, Ellen vem por trás, dá um salto e cai sentada ao seu lado sobre aquela mesma pelugem verde que aquecia a terra.
– Porra! – Leandro se afasta com um susto daqueles!
Ellen, gargalhando, avança em cócegas. Ela sabia os pontos que poderiam fazê-lo se contorcer como aquelas ginastas chinesas.
A tilápia dá outro salto. – Veja! – diz Ellen.
– Sim, estava aqui pensando com ela.
– Pensando? Você pensa? Hahahahaha. Talvez você possa aprender mais com este peixe que ele com você!
– Espertinha… – responde Leandro com cara de emburrado.
Leandro aponta para o rio.
– Está vendo estes redemoinhos? Eles surgem e desaparecem a todo instante.
Ellen também aponta para o rio.
– Está vendo este movimento? É a água fluindo por toda eternidade sem nunca se repetir – disse Ellen tirando uma com a cara do Leandro.
– Exato! – ele responde. – Pensava em Heráclito, que dizia que não nos banhamos no mesmo rio duas vezes.
Ellen não aguenta e cai em gargalhada. – Leandro, por acaso você está me convidando para tomar um banho de rio com você? – Leandro balbucia sem jeito alguma coisa ininteligível. – Ou quis apenas me impressionar com a capacidade de observação genial deste turco burro?
– Ah, quer dizer que conhece um pouco dele né? Éfeso, onde nasceu, corresponde hoje à Turquia mesmo. Mas o que eu estava te mostrando era outra coisa. Foda-se Heráclito! Veja, eu te mostrei estes redemoinhos, e você me falou da água sempre fluindo.
A atenção de Ellen voltou-se para o que Leandro estava tentando mostrar.
– Tá, e daí?
– E se do que somos feitos fosse como esta água fluindo, e quem somos fossem estes redemoinhos?
– Hummm, isso aí pode dar algumas ideias. Seríamos feitos da mesma matéria, e duramos pouco. Mas não é isso? Somos feito da poeira das estrelas, e nossas existências são nada diante do tempo do universo?
– Talvez, mas sobre isso tem muita merda por aí. Eu não estou falando de nós fisicamente. Não estou falando deste incrível e sensual pedaço de mau caminho que você está vendo… – e Ellen dá um empurrão em Leandro – Para de se achar! – ela diz.
– Brincadeira, só que não! hahaha. Ellen, estou falando da pessoa que somos.
– Ah tá, que somos um só, que estamos todos conectados, que a humanidade blá blá blá.
– Mais ou menos. É foda, pois dizer isso desse jeito confunde com milênios de doutrinas criadas para nos tornar obedientes. Principalmente as que, de alguma forma, caminham por uma via espiritualista. Além de que a visão de que estamos conectados pode reforçar ainda a ideia de individualidade: “Sou um ponto, ainda que conectado.”
– Ou, como falamos outra vez, que o discurso de que somos fractais continua ainda apenas um discurso cool – emendou Ellen.
– Isso. O que me dá um espírito de novidade aqui é ver como, falando da pessoa, somos feitos por algo que nos transpassa, mas que fluiu por todas as outras pessoas, e não fica em nós, mas continua fluindo.
A tilápia, que continuava rondando por ali acompanhando o papo, diz:
– Uma vez meu primo Golias, peixe-tigre africano, falou comigo numa língua estranha. Sua voz caminhou pelas águas, aquecendo e esfriando, e outros primos cuidaram se ecoa-la para que chegasse até mim: Umuntu ngumuntu ngabantu.
Bem que Leandro e Ellen poderiam ouvir o que aquelas bolhas que saíam da boca da tilápia explodindo sobre a superfície do rio queriam dizer. Ellen então diz:
– Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas.
Leandro repete. – Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas.
Os dois ficam ali, sentados, em silêncio, observando o rio a correr. É quando se faz desnecessário explicar qualquer coisa, pois ambos haviam percebido algo além do que falavam. Não vinha dele, não vinha dela. A tilápia observava um novo rio fluindo entre eles. Como num blink, tudo fez sentido. Sobre essas coisas, a tilápia já sabia, ou faz sentido num piscar de olhos ou nunca faz.
De início, ainda ficaram devaneando sobre aquilo tudo. Seria a pessoa algo de outra natureza, que apesar da origem no indivíduo da espécie homo, é sua genuína criação, um novo cosmos? Nascemos humanos ou somos humanizados à medida que nos tornamos pessoas? Quantos redemoinhos-pessoas podemos ser em uma vida? E a água? Flui tal como o social interage?
Depois, sem mais pensamentos, se despiram, tornaram-se outras pessoas, e foram se banhar em um outro rio, aquele mesmo à sua frente.