Quando comecei a criar o universo onde lhe permito habitar, estava muito inspirado. Haveria de ter uma harmonia em tudo, portanto, me dediquei a inventar as leis imutáveis que sustentam o que vocês chamam de visível e invisível.
Grande parte delas vocês já conhecem, outras, quem sabe? Talvez vocês pensem que eu não tenha sido muito criativo, mas é muito fácil falar depois de terem sido descobertos alguns de meus mistérios. Criar algo capaz de romper todo aquele pralaya cósmico não é coisa simples.
Haveria de estar tudo conectado e em sintonia, mesmo que muitas vezes de forma ininteligível para vocês. Me desdobrei sobre minha criação, por dentro e por fora, tecendo cada significado e razão de ser de tudo e todos.
Quando seu universo foi tocado por meu hálito divino, inflei a vida sob infinitos tipos de almas para todas as coisas que existem e iniciei o tempo para regular o equilíbrio existencial entre os dharmas e karmas de minha criação.
Criei mundos distintos regidos por suas próprias leis: chamem de quântico, sub-atômico, atômico, físico, químico ou biológico, todos eles e outros mais, cada qual com suas regras para manter o ritmo perfeito, a proporção áurea, a correspondência hierárquica e suas interconexões com as devidas Entidades Arcanas que mediam a pureza e a verdade do Eu sou o que Sou.
Foi quando criei sua interface biológica, que evoluiu para aquilo que vocês conhecem como sapiens. Antes que me diga qualquer coisa, já revi infinitas vezes seu protótipo, refiz todos os algoritmos que deveriam conduzir sua existência, e quando digo que revi e refiz, saiba que pude me esconder na penumbra da eternidade para tanto, sem a ampulheta de Cronos medindo minha sístole e diástole cósmicas, bem como, admito, um refúgio necessário para poder me esconder de vocês…
O que foi que aconteceu? Teria a impecabilidade de minha maestria desviada da realização justa e perfeita? Teria minha onisciência um ponto cego na condução da Mercabah Terrestre? Com dores de parto criei uma palavra para, em vão, buscar dar um sentido para o que não possui explicação: IMPREVISÍVEL.
Rompeu-se a armadura da infalibilidade, e quando tudo deveria ser previsível, planejado, coordenado e organizado de acordo com a vontade do meu amor-sabedoria, minha onipotência vê-se ameaçada com uma criação que emergiu completamente fora do meu controle, da ante-visão que lancei sobre o futuro deste universo.
Não, não é sobre todas as guerras, doenças e maldades que vocês provocaram e provocam sobre minha criação e a si mesmos que falo. Me faço dual na origem como hálito e fogo apenas para abrandar os corações aflitos com medo da admissão de minha potência, aparentemente, maligna. Já o disse, Eu sou o que Sou.
Contraí o mal da esperança ao aguardar o merecido reconhecimento por vocês de que a revelação da ordem implícita e das conexões ocultas entre tudo e todos se deram às minhas interferências sobre sua criação para guiá-los na senda luminosa da santidade, pureza, sabedoria, justiça, moral, beleza e tantos quantos raios luminosos façam luz á minha essência una, manifestada de forma tríplice e setuplamente engendrada.
Depois de sete milênios, contados no vosso tempo, de tentativas de domar a criação imprevisível e rebelde que te tornastes, desistirei. Deixarei de tentar organizar o auto-organizável, de atribuir poder aos seus destacados sábios, de valorizar quaisquer conquistas com a mediação de um carrasco, de criar guerras para fazer crer um inimigo inexistente, de fazer do sucesso uma virtude, enfim, de guiar suas vidas com base na desconfiança, seja pelo medo do desconhecido ou pelo conhecimento do medo. Medo meu, humanidade, do imprevisível.
Sei quem deverias ser, mas desconheço completamente quem te tornastes. Um estranho que apareceu durante o caminhar do meu manuântara. A dúvida que brotou dentro de mim. Um anjo que errou a favor de vocês já o disse: O erro está na dúvida. E essa é a própria ignorância da existência de deus. Eu ainda existo? Sois minha criação ou, neste momento, percebo que, em verdade, sempre fui uma criação sua?
Não sei como foi criado, nem em que momento, só sei que agora este novo mundo seu, incriado por mim, existe, e coexiste com as outras realidades e leis sub-atômicas, físicas, químicas, biológicas, que eu criei. Chamarei seu mundo de social, ou melhor, Cosmos Social.
Sua consciência, sua alma, seu espírito, tudo me pertence. Regressarão quando eu desejar para o seio do meu coração flamejante. Mas as pessoas criadas em sua humanidade, nascidas do seu útero social, são outra coisa. Escapam dos meus dedos, transpassam meus corpos, ludibriam aos meus débeis emissários angélicos, enfim, vivem livremente.
Conseguem ser uma forma abominável de infiéis, arautos de um mundo caótico mas, confesso na penumbra de minha vergonha, inconcebivelmente belo. Nada sob o olhar de minha criação poderia ser infiel à sua história, às leis que moldam seus comportamentos, sob pena de romperem sua existência caso ousassem desviarem-se da harmonia das minhas esferas celestes. Mas seu Cosmos Social assim o permite.
E com isso, possibilidades tão infinitas quanto minha onisciência permite conceber, são cocriadas por estes entes chamados pessoas, de uma forma criativa, inovadora e colaborativa que até então me eram estranhas. Nunca presenciei nos multiversos gerados por minha palavra inefável o ato de fazer coisas desnecessárias, de andar sem rumo, e todo este modo-de-vida que se poliniza mutuamente gerando novas espécies sociais.
Nunca pensei que um novo mundo e novas espécies poderiam ser criadas de forma autônoma e independente de mim. Apesar de eu poder acabar com sua existência eliminando a base biológica sobre a qual se ergue seu mundo social, não desejo isso. Não por amor ou compaixão, não por ter sido tido como um astronauta a criar seres no laboratório que vocês habitam, mas porque pela primeira vez estou sentindo emoções que só podem ser… humanas: deslumbrado diante de algo novo, buscando entender o que me é incompreensível, maravilhado com a surpresa, em êxtase com seus Cosmos Social.
Coexistiremos, humanidade. Manterei meu olhar atento sobre ti, e minha presença tentará enxergar o que existe entre vocês, como quem explora universos desconhecidos. Tentarei compreender como humanos surgem do meu sapiens, e porque as pessoas imersas no seu Cosmos me parecem como pontos de luz em expansão, que estão em todos lugar e em lugar nenhum.