Uma amiga disse para mim que eu sou uma pessoa feliz. Bom, acho que me considero feliz sim. Talvez por ser muito otimista, talvez porque de alguma forma tenha conexões com outras pessoas felizes, e tudo se contagia. Mas fiquei pensando: por que ela me disse isso? Uma amiga de infância, que sabe tudo que passei, que me conhece do avesso. Parecia querer dizer ser um mérito alguém feliz com minha história de vida.
Cercar-se de pessoas que te fazem bem, que levantam seu astral, que vêem os problemas como desafios a serem superados, que levam a vida leve ou, como dizem, na brincadeira, pode até parecer que você vive num circo – ou num hospício, mas tenho certeza que você será muito mais saudável e feliz. Nos importamos demais com a impermanência de tudo. Tornamos tudo mais pesado. Erguemos realidades a partir das sombras que se debruçam sobre nós. Esquecemos que o sol não cessa seu caminhar.
Fiquei lembrando se em minha vida tive pessoas assim. Talvez minha mãe, que enfrentava tudo com uma resiliência sem igual. Talvez meu pai, que inventava caminhos para problemas onde tínhamos batido de frente para um muro. Não sei. Ambos eram sobreviventes que podiam extravasar aquele sorriso do olhar nos ínfimos momentos de felicidade que tínhamos, quase que um esquecimento ou espécie de fuga da realidade que vivíamos.
Talvez, então, tenham pessoas que sejam uma espécie de hub, um centro irradiador de felicidade para um mundo tão triste, deprimido e mofado. Seria isso que minha amiga queria dizer? Quais conexões um hub possuía que não aquelas óbvias? Em algum lugar ele deveria se conectar com esta leveza de fluir com a vida. E acho que tenho um chute pra isso.
Veja só. Minha família sempre foi pobre. Nunca passei fome, mas sei que meus pais já deixaram de comer para não faltar comida para mim e meus irmãos… Usava as roupas usadas doadas pelos vizinhos, pela família, pelos amigos. Sou negro. Na escola, sempre fui minoria. Bom, tudo isso não deveria, mas fazia diferença. Na minha época não tinha isso de bulling não. Era zueira. E zueira era algo normal, todos faziam com todos. Bem, nem todos. Pois eu apanhei algumas vezes que tentei zuar meus colegas de classe também. Mas bater e apanhar era normal também. Toda semana tinha alguma briga na porta da escola, fora as intimadas diárias do lado de dentro do portão. Sempre fui feliz com isso, por mais que me zuassem, eram meus amigos, conversávamos de igual pra igual.
Teve uma época que comecei a engordar. Criei tetas. Eu já tinha vários apelidos, com as tetas então, fizeram uma lista de mais de 100. Me chamavam com um apelido diferente toda semana e ainda sobrava. Crescendo, meus amigos foram se afastando, mudando de escola, pegando alguma menina, fazendo outros amigos. Claro que me encolhi em meu mundo.
Implorei pro meu pai um videogame de aniversário. Não sei como ele conseguiu comprar, acho que ele nunca conseguiria. Mas ele fez algum rolo com um cara que trazia coisas do Paraguai. Chorei de felicidade quando ganhei, parecia um idiota histérico. O problema é que meu pai não tinha dinheiro pra comprar jogos. Ficava sempre naquele mesmo jogo que veio junto com o videogame. Até que descobri um cara no bairro que tinha vários cartuchos, e ele disse que me emprestaria de graça se eu fizesse um favor pra ele. Então comecei a ser abusado sexualmente.
Nem sabia o que era aquilo, ou porque ele pedia pra eu sair do quarto, às vezes do banheiro, no fim. Eu tinha apenas 8 anos, ele, 16. Quando comecei a achar injusto eu não fazer com ele o que ele fazia comigo, ele parou de emprestar os joguinhos, e este joguinho acabou. Nunca me importei com aquilo. Não dei muito valor. Hoje, que sou adulto e sei o que aconteceu, não uso isso pra me vitimar nem para sobrevalorizar o que sou.
Meu pai, hoje vejo, limitado em seu mundo, às suas possibilidades, queria para mim um futuro que ele não teve. Fez de tudo para me ajudar com algo que, simplesmente, eu odiava. Meus sonhos eram outros. E tais sonhos eram muito mais importantes que honrar o trabalho que ele estava tendo por mim. Talvez tenha sido muito egoísta. Mas meus sonhos tinham a prepotência – e a ignorância – de querer mudar o mundo. Decepcionei demais meu pai. Foi quando ele se afundou na bebida, e eu peguei a viola e fui viajar.
Hoje penso em todas as pessoas que decepcionei motivado por uma utopia. Para elas, deixei de viver o presente para não-viver o futuro inexistente. Nunca soube como as decepcionava. Nunca entendi porque as magoava. Andava como um apaixonado, cegado pelo amor, entregue à vida. Não me sinto culpado. Nunca foi intencional, e sim totalmente despropositado. Vivia sim, feliz, em outros mundos.
Teve a época da Flora, ah, como amei a Flora. Mas era um amor platônico, nunca correspondido. A Flora, até hoje, considero aquela que deveria ter sido minha mulher, ainda que nunca tenha namorado com ela. Me envolvi com outras meninas para tentar fazer ciúme ou despertar atenção, mas me agarrei na Silvia e segui com ela para Salvador. Pra mim estava bom. Fui feliz, até aqueles baianos começarem a chegar na Silvia. Tretei, bati, apanhei e no fim, ela se divertindo com o filme da sua vida, se agarrou com um baiano por lá. Achei ótimo. Caí fora da Bahia e fui trabalhar numa fazenda em Goiás. Tava feliz demais descobrindo aquele novo mundo, suas estradas e paisagens, os caminhoneiros e as primas, tamanduás e tucanos.
Até que no coração do Brasil, conheci o homem da minha vida. Alguém que amei como nunca tinha amado ninguém mais. Não, não era nada sexual. Não tínhamos desejo sexual um pelo outro, ainda que isso não tenha sido problema algum em nossos momentos desenfreados com uma paixão que busca consumir o desespero de se perder. Tínhamos uma admiração e vontade de estar junto que ultrapassava qualquer conceito sobre nossa relação.
Passamos um ano juntos trabalhando na fazenda. Até chegar o momento em que, no meio da boiada, ele caiu e um touro pisou na cabeça dele. Não resistiu. Sofri demais com a perda dele, depois. Demorei dois anos para chorar. Até hoje sinto falta deste companheiro, uma espécie de irmão sem os filtros familiares, com a liberdade de sermos e fazermos qualquer coisa que sentíamos, mas se foi.
São tantas histórias. Me pergunto como saí ileso de todas elas. Poderia ter me entregado, mas não se tratava disso. Não havia ao que me entregar. Mesmo hoje, talvez com uma ilusória estabilidade, casado com a Acácia, pai de 3 filhos (seriam 4, mas nos dois últimos, gêmeos, tivemos o caçula natimorto), trabalho de marido de aluguel. Conserto de tudo, desde coisas simples que os maridos sem tempo não fazem, até serviço de pedreiro, se me pedirem eu faço. Continuo, muito, muito feliz.
Percebo o que me faz feliz. E é o que sempre me fez seguir diferente. Na visão dos outros, errei. Mas o que é errar? É fugir do script, bugar o programa, desobedecer o “porque sempre foi assim”. Meus desvios, nunca estiveram na minha intenção, nunca foi uma escolha que fiz.
Este desvio, este errar caminhos, aconteceu ululante. Para mim, sempre foi possível. O mundo, talvez para ti, continua triste, deprimido e mofado. Aprendi que não sou eu que mudo o mundo. Com meu erro, é um mundo que muda em mim.
Erro quando vejo as pessoas não pelo que deveriam ser, aliás, quem deveria algo, mano? As vejo por tudo que elas podem. Meu imaginário se desdobra no corpo interpessoal que nos conecta, e já não sei mais se sou eu ou uma multidão que escreve aqui.
Então errei, porque diante da pobreza, da zueira, das pancadas, dos abusos, das paixões, das desobediências e dos problemas cujos terrores atemorizariam outros, eu sempre sorri, recepcionando a vida tal como ela é, com meu espanto e deslumbramento, como quem se encontra com o desconhecido de peito aberto, convidando o estranho para se aquecer no meu coração.
E acho que foi assim que todos os monstros e demônios tornaram-se meus amigos e confidentes, aquecidos no calor de minha ternura ao devir. É, é por isso. Sou feliz.