Aquele órgão começa a tocar na sala. Estou no longo corredor por onde escorrem as alegrias e lágrimas refugiadas da exposição de minhas fraquezas.
Ele está na cozinha. O som flui por toda a casa.
É uma piada irônica e cruel.
Manchas de nicotina fixam suas marcas em meu rosto, provenientes de seus beijos de afeto e carinho. Mas sua piada continua, irônica e cruel.
Teria ele tido essa mesma infância? O quanto não estaria robotizado nos loopings infinitos de seus próprios medos.
Permaneço encolhida naquele corredor. Luzes da cidade, algumas estrelas, pseudo-infância.
Ele diz que nunca pretendeu partir meu coração, mas a desconfiança nasceu do ovo daquele demônio. Lembra das estrelas cadentes, dos anéis de Saturno, dos pés descalços na grama, das estradas que sumiam no horizonte.
Minha vontade é correr, atravessar o portão e sumir entre a neblina que começa a formar nas ruas uma muralha de confusão e deixar o fantasma daquele amor para trás. Quero sair, sem rumo, como pássaro livre de sua gaiola.
Eu sofro, mas ele, cegado por sua própria vaidade e orgulho, deve sofrer mais. Meu vestido de hematomas, as cicatrizes na minha alma como jóias me adornando, tudo para ele é lindo, é história, a nossa. Mas em nosso quarto sombras dançam me distraindo das mágoas, sou hipnotizada pelas línguas luminosas das velas vivas, e ele sussurra algo ininteligível.
O papel, o caderno, todos meus desenhos, fugas efêmeras para lugar nenhum, o subúrbio em minha própria cama, nada é meu. Tudo a ele pertence, inclusive eu.
Para ele minhas decisões tomam um caminho indireto, errado, errante. Eu acho que é hora de ir. Mas a chuva me recolhe.
Parte de mim é cinzas e elas continuam queimando. Só queria poder me abrir sem medo, sem culpa, sem julgamento, me transvestir com aquela criatura portadora da linguagem que estilhaça os corações. O medo, em breve saberei que não é meu.
Me joguei no abismo à sua procura. Você se acostuma com a queda. Aguardava pacientemente, querendo como quem não quer, encontrá-lo. Vi Alice, o coelho e a lagarta iluminados por uma luz de sangue. Diamantes refletindo vidas estranhas e esquisitas, um homem pegando fogo, arco-íris reluzindo dentro de mim. Todos estranhos conhecidos de longa data, moradores da pessoa na qual nos emaranhamos.
Em breve, todas as mentiras se desintegrarão em miríades de espelhos instantâneos. Eis que me vejo, um duplo, um reflexo, e mergulho em meus olhos.
Primeiro ele aparece ali, na alma, como um dragão saindo da caverna, uma besta ameaçando com seu cheiro de morte minha curiosidade ingênua. Correntes me levam aos seus dentes rangendo, mas continuo a olhar, como quem procura algo diferente, novo, entregue aos calafrios que me congelam.
Eu mudo e, naquele diamante finamente organizado, sua estrutura se altera, e a luz, o brilho e a transparência da pessoa que somos desaparece dando lugar ao carbono escuro, sombrio, opaco e negrume. Me transfiguro como Cristo naquele instante oculto e encoberto com medo da morte na cruz construída pelo seu pai. Meu Cristo é outro, meu pai também, e agora, ele…
O vejo sem maquiagem, sem seus piadas irônicas e cruéis, o vejo sem a máscara que usa para seus amigos. O vejo como é, em mim, neste pedaço de carvão que sou.
Um demônio aterrorizador, monstro de todos os passados, criatura que apodrece tudo que toca, e seu maior poder, o medo, não era meu. Não… Eu o vejo em seus próprios olhos, e o medo se revela… nele. Ele é o senhor do medo, a expressão mais pura de quem se esconde de si mesmo.
Revelação, descoberta, deslumbramento. Como quem vê a vida passar logo antes de morrer, tudo muda. Minha culpa, tão educadamente reforçada enquanto fui espancada nestes últimos anos, se esvai. Era ele batendo em si mesmo, ou melhor, se debatendo como uma criança mimada fazendo birra. Nunca tive hematomas ou cicatrizes.
Volto chapada com luzes de carnaval e reencontro com uma criança, minha infância.
Ela estende suas mãos como quem me devolve vida e alegria. Os soldados, os tanques, porta-aviões, helicópteros e caças de guerra, todos queimaram com aquele carvão e se encurvaram em seu negrume.
Eu posso agora sair daqui. Encontrei novas luzes para miríades de novos destinos. Nas cinzas de minha memória levo uma história que pode criar novos mundos.
A criança que uma vez amei é devolvida à mim. Nunca havia sentido isso dentro, este coração… livre. Posso ser, estar e fazer o que quiser. Posso me apaixonar, finalmente, por ela. Não há fim para a infância.