Depois de tanto tempo juntos é óbvio que muito do que sentimos interpenetrava nossos corações em rede. E todos, de uma maneira ou de outra, sentíamos aquele chamado. Foi assim que tomamos a decisão de encarar o futuro no presente e seguir para a Grande Reunião.
Um tiro no escuro, com o imprevisível e improvável à frente, ainda que motivados por rasas descrições entendidas como verdadeiras revelações para um novo ciclo. Em verdade, um salto de fé. Pessoas corajosas o suficiente para incorporarem seu propósito, sua missão de vida, e deixarem tudo para trás rumo ao desconhecido.
Família, profissões, amizades, a vida, uma outra vida. Tudo ficou ali, naquele espaço-tempo dos fluxos que já é passado, e migraram em atendimento ao chamado que sentiam. Um misto de tristeza e felicidade inundou as emoções convertidas em lágrimas. Haviam chegado naquele lugar-nenhum, terra-de-ninguém, disfarçados como espiões que há tempos observavam e conheciam os modos e costumes daquele povo que vivia como figurante para um projeto muito maior: o futuro da civilização.
Encontrar o portador da voz do chamado não foi fácil na mesma medida em que também foi incrível. Exploradores do conhecido-desconhecido sendo levados pelo vento e direção das folhas. Primeiro, deveriam encontrar um sacerdote que poderia levá-los ao templo incrustado na rocha. Esse sacerdote não era de nenhuma igreja ou religião, e sim, um autêntico pajé de uma linhagem antiga que mantinha os segredos e a vida de sua tradição e mistérios.
Ali, em meio toda poeira que raspava o lodo, neste ambiente inesperado, a luz de um diamante resplandeceu e foram guiados até aquele intermediário. Como reconhecê-lo? Como saber se o local estaria correto?
Muito tempo antes um dos membros do grupo havia tido um sonho onde via o local prometido. Desenhou e mostrou aos seus amigos. Eram três pirâmides em meio ao cenário agreste, disfarçadas como formações rochosas entrelaçadas pela mata do cerrado. Na pirâmide central, a entrada.
Então tomaram o caminho em direção à aldeia. Quase chegando, na beira da serra seca e rochosa, eles pararam para fitar – já com olhos marejados tal como aquele que retorna à sua casa – um lar que haviam deixado há milênios, perdido, e que finalmente fora encontrado. Na casa alguém os aguardava: seu pai.
Viam duas pirâmides rochosas, exatamente como a do desenho do sonho, e a terceira ou central, também viam, mas em seus corações. Ela estava ali para que fosse vista com outros olhos, que não os físicos.
A aldeia estava em festa. Logo que chegaram todas as crianças vieram fazendo algazarra. E então se destaca em meio a comunidade aquele pajé, que veio dar um longo abraço como verdadeiros irmãos que se reencontravam.
Passaram o dia e a noite contando histórias e atestando as diversas causalidades que confirmavam sua missão. O dia seguinte seria uma longa caminhada em direção à pirâmide central. Nessa jornada o pajé foi apenas até uma parte do caminho e indicou a trilha. “Siga o som da água”, disse. Finalmente a entrada surgia em meio à rocha e folhas, encoberta por uma cachoeira que formava um lago circular.
É chegado o momento. À medida que penetravam na escuridão pequenas luzes acendiam nas paredes da caverna como ínfimos diamantes que transformavam aquela caminhada em um vôo pelo espaço estrelado. Aos poucos tudo foi se iluminando e puderam se defrontar com aquele salão imenso, repleto de pessoas de todos os tipos e seres de todas as naturezas, cujas paredes de cristal permitiam que a natureza exuberante permease o recinto e cuja abóbada era aberta para um universo ainda não conhecido por olhos humanos.
À frente, um tríplice trono. E no centro estava ele, o pai de todos. Rex Mundi tremendae majestatis. Um manuântara inteiro dedicado àquele no qual os anjos circulavam e entoavam hinos de louvor. À quem anunciavam com suas trombetas para as 7 direções cósmicas, mas que hoje, era outro…
Vacilamos em continuar. Uma força tremenda vibrava ali, parecia que íamos nos desintegrar. Então a voz Dele, que parecia vir de todas as direções mas era ouvida apenas pelos nossos corações, nos motivou a continuar.
“Esperados há muito tempo”.
Um rei, ou melhor o Rei dos reis, mas renovado com uma nova harmonia musical, uma outra alma, que não aquela do seu antigo irmão que já havia deixado a Terra para se recolher em paz por trás do olho-que-tudo-vê.
Nosso Pai seguiria a tradição de todos os outros Reis? Manteria todas as hierarquias sob o jugo de sua espada e a sabedoria de seu báculo? E a sua humanidade, que tanto defendeu e por ela tanto sofreu? Sentíamos algo diferente no ar. Todo aquele povo, todos tão diferentes, tinham algo em comum: vieram do seu coração, como filhos do fogo sagrado.
E à medida que fomos nos aproximamos de seu trono podíamos ver em detalhes que, de seu peito, brotava um coração flamejante que parecia conectar todos os presentes, entre nós e com ele.
Os últimos pedaços, fagulhas rebeldes perdidas no mundo, folhas soltas da árvore da vida, haviam chegado. Éramos nós. E, sim, reunião foi unir novamente. Para que?
O que era de se esperar, tal como todas as outras dinastias divinas antes da Dele, era selar o início do seu reinado e toda a transformação que seguiria no caminhar da evolução. Mas ele não era apenas divino, na verdade, depois de tanto tempo longe do candelabro celeste, tornou-se mais humano que muitos de nós.
No coração flamejante de seu peito não estava reunido apenas os mundos ditos espirituais e sutis, mas toda a parafernália física que amparava outras criaturas não humanas ou mais-que-humanas na Terra. Então realizou-se o Maior dos Absurdos.
O início de sua dinastia marcou o fim da mesma. Ao invés de manter todo aquele poder concentrado em si mesmo, tal como foram todos os outros e Ele era naquele momento, vimos uma espécie de um novo big bang. Uma explosão partindo daquele coração, a gema luminosa da estrela da manhã, que não teve um sentido destrutivo nem criador, mas uma poeira cósmica solidária que sutil e amorosamente pedia licença para se interpenetrar e sinergizar com o cosmos social humano.
Rex Mundi estilhaça-se. E nós, com ele. O Deus Único some no tempo e se deixa permear e ser permeado por miríades de potenciais outros deuses.
Não foi apenas a expressão máxima da ponta da pirâmide que se pulverizou, mas também toda ideia de que existe uma realidade ou um mundo único.
Miríades de mundos.
Anima-mundi? Deva-mundi? Não mais. Não somos células de uma outra coisa qualquer. Ideia que torna-se monstruosa diante do serei o que seremos. Cada um de nós, qualquer um, é o Simbionte. A perspectiva unitária desintegra-se perante a emergência fractal. Não há unidade, não estamos unidos, uníssono e unificados. Não há noosfera, nem peças de um novo mecanismo. Não haverá outra civilização.
São miríades de civilizações, de sociosferas.
O fim do mundo é apenas o fim desta cultura patriarcal que elegeu a si mesma como única possível. Não vamos deste para nenhum outro mundo, vamos para infinitos outros mundos.
A vida é um processo que está em todo lugar onde ela está. Se, em autopoiese podemos nos criar enquanto humanos, há vida, novas vidas, novas pessoas, nossa humanidade.