– O seu problema é que você está com os olhos fechados para as desigualdades!
– Como assim? De forma alguma? Todos devem ter igualdade para proferirem suas opiniões, de concordar e discordar do que quiser, de poder livre-pensar sem sofrer nenhum tipo de punição por isso!
Passa pela mente da Tereza a lembrança da infância e a emoção de quando seus pais deixavam de comer para dar a ela uma refeição.
– Mas isso não é importante, meu amigo.
Ele então lembra das tantas vezes que suas ideias foram vistas como ridículas ou absurdas, sobre como vivia fora da realidade, do quanto engoliu a própria voz para evitar o pior.
– Não! Isso é a coisa mais importante.
– Essa igualdade de liberdade, que é o que me parece que você quer defender, não mata a fome de ninguém. A igualdade que importa é a sócio-econômica. Como é que você não fica escandalizado com a realidade de que no máximo 10 pessoas possuem a mesma renda que metade da população mundial?
– Tereza, em algum relatório ou gráfico desses aí que você consulta, por acaso já viu alguma comparação entre desigualdade e democracia?
Um silêncio de fez. Tereza na verdade tinha uma leitura tendenciosa. Lia apenas os livros que lhe confortava intelectualmente, autores que poderiam lhe saciar com mais argumentos sobre o que já acreditava. Ele continuou:
– Veja, não tenho nada contra a desigualdade econômica. Do jeito que você coloca, parece que acho isso correto. Não! Deve-se combater isso sim!
– Mas, então?
– O que não concordo de jeito nenhum é colocar essa sua luta pela igualdade sócio-econômica como condição para nossas liberdades.
– Você é burro! Ou vive no reino da fantasia! Que liberdade é essa que você acha que pode resolver nossos problemas econômicos?
– Estou falando de igualdade política, de democracia. Isso é o que quero dizer com liberdade. Você, pelo contrário, acredita em desliberdade, já pensou nisso?
O sentido da palavra nem de leve desejou raiar na mente de Tereza. Ela recorreu à sua finesse sobre como não tinha atitudes radicais, ainda que, em segredo, se juntava mascarada em manifestações de vandalismo contra detentores do grande capital.
– Deixa de ser radical, você me conhece, sabe que valorizo a liberdade. Só acho que é uma ilusão achar que você vive livre quando há pessoas que concentram tanta riqueza. E, pior, quando você acha que vive em liberdade mas na verdade é conduzido como gado de rebanho sem nem perceber.
Zé Ramalho apareceu naquele canto do cérebro, acenou, e Tereza pausou sua fala para se entreter com tão luminosa presença.
– Sem, ainda, entrar na sua questão, já pensou que você que se diz tão democrata, na verdade não acredita na democracia, ou não entende lhufas disso!
– Ah tá, você, que nem fez universidade nem nada quer agora dar aula pra uma socióloga sobre o que é democracia? – falou colocando em riste sua metralhadora munida de todos os autores, orientadores, professores e artistas que conhece ou ouviu falar em toda sua vida. Era guerra. Valia tudo.
– Hehe, é isso aí. Você escutou o que você falou? Você entende o quanto antidemocrática é sua frase? – a plateia ri com ele.
– Cala boca, se eu não sei algo, não me meto a ficar falando. O que você leu a respeito?
– Me responde uma coisa, senhora democrata. Me responda quais caminhos você acha possíveis para nos levar à uma condição de mais igualdade, tal como acredita? – falou ele, ativando o gatilho da armadilha.
Infelizmente, Tereza, envolta pelo perfume da utopia, virando um copo de cachaça e inebriada pela vaidade, respondeu:
– Dentro deste mundo que vivemos, somente através de um líder esclarecido ou de alguma revolução para tomar o poder e então desconstruir tudo o que nos oprime. Não tem como mudar se você não tomar a máquina que estes mesmos magnatas operam nos fazendo de marionetes econômicas.
– E você acha que isso é defender a democracia?
– Democracia só se conquista com luta. Não temos como chegar à democracia sem vencer esta guerra.
Aqui acabou qualquer conversa democrática… Guerra, luta, nem sei se quero continuar ouvindo a papo desses dois. Vou pegar carona neste fluxo aqui. Fui!
– É por isso que lhe disse que você defende a desliberdade. Você não tem nada de democrata, Tereza. Você não defende a democracia. Você defende o seu lado e só vê o mundo como uma luta entre dois lados, consequentemente, em estado de guerra permanente. Tudo isso, essa forma de pensar, só cria mais comportamentos autocráticos, não democráticos.
– Ah, e você acha que vive numa democracia?
– Se eu não vivesse em uma democracia, eu não poderia estar tendo esta conversa aqui com você sem ter, no mínimo, medo de ser punido. Olha, essa ideia de igualdade como bem supremo, é uma ideia maligna.
– Maligna!?
– É, porque ela admite que um povo se submeta a processo autocráticos, desumanos, de guerra, sob a promessa de que isso é um caminho para a almejada liberdade ou reino da prosperidade. Ou, como você disse, isso seria o caminho para a democracia. Você já imaginou o quanto de sofrimento ocorre diante de uma promessa utópica dessas? Só que você, socióloga, não sacou que a democracia não é um lugar onde temos que chegar, mas sim um modo de caminhar.
– Um modo de caminhar, meu amigo, já temos com o Estado de Direito. Se isso não é respeitado, não temos democracia. O que não temos ainda é igualdade sócio-econômica.
– Só que o Estado de Direito surgiu para domesticar a besta fera do Leviatã, não foi? E sim, com ele temos uma democracia que, ainda que seja representativa, nos permite viver em liberdade. Porque quando o Estado de Direito surgiu ele veio trazendo o mesmo gene de quando os gregos inventaram a democracia.
– Que é…?
– Não ter um senhor! A história você conhece… Portanto, aceitar termos um bom líder hoje que nos leve para um amanhã radiante, corrompe toda ideia de democracia. Esta democracia utópica passa a ser um fim para justificar os meios que acabam com qualquer modo de vida político ou democrático.
– Ah tá! E você acha que você não tem um senhor? Pelo amor…
– Olha Tereza, o que a democracia que temos garante é que todos, ignorantes – como eu, pobres, ricos, sábios, possam opinar e contribuir para nosso destino coletivo. E é esse processo que deve ser expandido, porque a opinião é a matéria-prima da política. Só se alcança democracia com democracia. Agora, quando você inclui na esfera política relações econômicas ou sociais de igualdade, penso que isso é outra coisa, não é próprio da política. É algo que eticamente é super importante e desejável, como a universalização da cidadania, mas não é próprio da esfera política.
– Ok! Você precisa ler mais um pouquinho antes de continuarmos esse papo. Vai me fala agora que a política não influencia a cidadania.
Ele inspira suave e lentamente. Expira. Lembra ela que a democracia não surgiu para acabar com as diferenças sociais, mas para evitar que se ergam relações de poder a partir dessas diferenças. Portanto, a igualdade – política – é condição para haver democracia. E pede que ela pense numa última reflexão:
– A liberdade você quer aqui e agora. Estamos em um espaço público conversando sobre política e temos liberdade para expressar nossas opiniões a respeito, sem sermos presos, por exemplo. Todos podem fazer isso aqui. E é desta interação que resulta a opinião pública, que vai definir nossos destinos políticos. Se dessa forma não for possível resolver problemas sociais e outros, quem vai resolver? O seu líder revolucionário? Um sábio que assume a autoridade de levar a história ao seu futuro radiante? Ou seja, será sempre um autocrata. E a liberdade de nos autoconduzirmos não pode ser condicionada pela necessidade de sermos conduzidos para então, só depois, podermos nos autoconduzir. Que pegadinha é essa?