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Somos quem podemos ser? #devir31

Não estou falando de quem é realmente muito famoso, rico ou tenha muito poder. Todas essas coisas somente alguns podem ser mesmo, ainda mais em uma sociedade que se estrutura verticalmente, na qual alguns poucos se destacam em detrimento dos outros. Quero me referir à fama clusterizada, à riqueza passageira e aos pequenos e, também, podres poderes.

Venâncio tinha tudo isso. Em nossas vidas ordinárias todos temos algo que pode ser destacado, e com dedicação e foco este “algo” – que naquele momento se torna único e diferente em nós – ele é capaz de nos levar à fama, riqueza e poder, tal como Venâncio já teve, a comum, não aquela extraordinária ou permanente. Venâncio se jogava na vida, como todos nós, então ele seguia o fluxo do rio. Para ter algo permanente ou tão fora do comum precisaria levantar sua enxada contra a terra – e algumas cabeças – e cavar várias canaletas para desviar o fluxo para um açude, talvez.  

Ele questionava sua humanidade, algo que de maneira alguma poderia passar pela sua mente, de livre e espontânea vontade. E este era um desses casos. Em intenso conflito interno Venâncio dava mais um gole em sua taça de vinho e se perdia nos livros da estante de sua biblioteca.

Lembrou de Umberto Eco com seus mais de 30 mil livros. Não tinha lido quase nada, e disso Venâncio se gabava. Sua biblioteca era muito menor, talvez não chegasse a 10% da de Eco, mas tinha lido e estudado cada livro da sua estante. Poderia aquilo servir como um atestado de conhecimento, ainda mais para quem não tinha se formado em nenhuma universidade?

Venâncio sempre achou que aquela ideia do Eco de dizer que seu livros, em sua maioria ainda não lidos, eram para mantê-lo com humildade sobre tudo quanto desconhece, era pura balela. Ele achava mesmo que o Eco poderia ter algum tipo de compulsão em comprar livros. Pelo assunto, pela capa, simplesmente por ter, não importa. Eco tinha uma tara por livros tal como a maioria das mulheres tem por sapatos.

O copo precisava ser preenchido, e o fez até ficar metade cheio. Pensou que não, estava metade vazio. O conflito do copo não chegava nem perto do que estava passando. Sua vida passava em sua mente como aquelas descrições de quem passou pela morte e voltou. Talvez alguém morria, alguém precisasse morrer. Aquela pessoa que lhe assombrava…

Lembrou que sua fama em biologia, o campo ao qual dedicou toda sua vida, realmente era reconhecida por muito poucos. Mas que era assim mesmo. Lembrou que sua riqueza e este modo de viver semi-luxuoso sempre esteve acompanhado de ciclos de grandes dívidas, não pagas, ou pagas sob o custo de outras pessoas ou do próprio tempo. Lembrou dos detalhes do seu dia-a-dia e de como a cegueira deliberada sobre aspectos de personalidade massacrava outras pessoas em toda pequenas decisões. E pensava…

Sou assim mesmo? – pensou. Não, não sou assim. Mas… se eu olhar deste ângulo, bem que poderia ser, não? A confiança sobre quem somos molda nossas vidas. Pouco importa o que os outros pensam de mim. Mas isso me abalou. Me abalou porque ela foi minha companheira por tantos anos. Já separamos e voltamos duas vezes, somos feitos um pro outro, mas ela é a única que me entende. Por que ela ficou tão magoada? Por que eu fiquei tão magoado?

Acho que nos amamos mesmo. Será que eu poderia pensar sobre tudo isso sem querer encaixar tudo em minha visão da biologia? Poderia esquecer os templates mentais que criei para mim mesmo e simplesmente aceitar a simplicidade do que somos e do que fazemos?

Ela disse que eu não enxergo o real problema porque isso implicaria em mudar a história que conto sobre mim. Tudo passa pelo meu filtro cognitivo para adaptar as circunstâncias à narrativa que desejo contar, criar, manter, acreditar. Então, simplesmente, não vejo. Mas este é meu conflito. Estou vendo, mas olhar para esta parte do fluxo implicaria ver uma pessoa que não sou. Ou sou? Estaria disposto a me revelar? A ver o desconhecido, que tanto defendo descobrir, mas que parece que sempre me esquivo?

Tem algo aí que não sei se estou pronto. Ou se quero. Nesta altura da minha vida, me sujeitar à isso? Porque simplesmente não viramos as caras para este conflito e continuamos nossa vida, tão boa e tranquila, tão prazerosa e feliz?

Nunca tive ninguém que me magoou tanto e continuou comigo. Algo se rompe no fundo da relação, nunca fica a mesma coisa. Mas ela, que estranho. Talvez seja um problema meu mesmo? Me disse que não tenho amigos. Como assim? Tenho tantas pessoas que são minhas amigas. Claro, vieram e nos conhecemos pelo meu trabalho como biólogo, mas se comprazer na companhia do outro é amizade. Aí ela me vem com o papo de que todos podem até discordar de alguns pontos da minha pesquisa, de minha opinião (ok, poucos o fazem), mas ninguém nunca colocou o dedo em minhas feridas e mostrou meus erros e problemas. Ela tem coragem de fazer isso. E continuamos nosso relacionamento, incrível. Nos amamos, mas temos essa amizade também. Me disse que o restante não são amigos, são puxa-sacos ou aqueles tipos de demônios que sugam minha genialidade com cadinhos mergulhados no fundo de minha alma. O quanto sozinho estou neste mundo?

Todos temos defeitos, é claro. Isso nos diz que somos humanos. Eu tenho todos os defeitos, vícios, cacoetes, que qualquer pessoa tem. Como ela pode dizer que só assumo isso genericamente? Parece que nem me conhece! Talvez ela tenha um pouco de razão. Não posso ser orgulhoso a ponto de achar que todas minhas decisões e julgamentos são acertados. É difícil reconhecer, mas é fato que boa parte de meus comportamentos são reflexo da vida que tive e tomados de forma completamente automática, irracional. Sou quem posso ser. Será?

Seria eu o monstro da autossuficiência? Porque sempre me coloco como vítima das situações? Sim, meu desejo é sempre ajudar os outros, é o que faço. Nunca me coloco em primeiro lugar. “Este é o problema”, ela me disse. “Você não aceita ajuda, porque nem passa a possibilidade de um dia precisar da ajuda de outra pessoa, de não poder resolver seus próprios problemas, ou mesmo de ter que confiar em alguém como confia em si mesmo.”

Pontos cegos. Há tanto ainda por descobrir sobre quem sou e quem poderia ser. Já fui tanto sensível às questões existenciais, mas é ela que me permite perceber como não sou capaz de fazer uma introspecção apropriada para avaliar meus erros. Sem perceber, machuco ela, machuco outros, e perdido em minha complexidade vou me afastando de mim mesmo. Todos aqueles que poderiam ser realmente amigos, jazem na distância do passado, no além de meu isolamento. Tudo para manter a história que criei. Que conto pra mim. Que conto para os outros. Mas não a história que só ela sabe.

Desliberdade, #devir30

Criador de mundos, #devir32